Onde está o Bom Deus?

Todos nós já nos fizemos essa pergunta.

Não estou falando sobre os acontecimentos mundiais recentes: crise econômica iminente, ameaça cultural, cerceamento de liberdades individuais, quarentena, falta dos sacramentos nem nada disto.

Estou falando, como normalmente, daquilo que importa: da vida interior.

Toda alma, quando se converte, se vê diante de um conflito interior: aceitou a fé e se convenceu das verdades mais básicas, mas vê em si mesmo uma resistência à amar e crer.

Por isso, cremos e amamos tão facilmente as virtudes, mas somos tão relutantes e preguiçosos em alcançá-las. A medida que vamos avançando e descobrindo as doçuras e exigências de uma vida cristã coerente, o conflito se intensifica dentro de nós.

É um cenário bastante comum: fulano se converte, passa a frequentar os sacramentos com assiduidade, mas não consegue adquirir virtudes ou permanecer em estado de graça por longo tempo. Ou então, após um certo tempo de intensificação da vida interior, se torna morno e volta à estaca zero.

É comum que, com a frustração de nossas metas não atingidas, perguntemos-nos: onde está Deus?

Essa pergunta não é uma miséria moderna. O maior exemplo do drama interior da dificuldade de converter-se é o grandioso Santo Agostinho. Vejamos o que ele mesmo declara:

"O inimigo dominava-me o querer e forjava uma cadeia que me mantinha preso. Da vontade pervertida nasce a paixão; servindo à paixão, adquire-se o hábito, e não resistindo ao hábito, cria-se a necessidade. Com essa espécie de anéis entrelaçados (por isso falei da cadeia), mantinha-me ligado à dura escravidão. 
"A nova vontade apenas despontava; a vontade de servir-te e de gozar-te, ó meu Deus, unica felicidade segura, ainda não era capaz de vencer a vontade anterior, fortalecida pelo tempo. Desse modo, tinha duas vontades: uma antiga e outra nova; uma carnal, outra espiritual, que se combatiam mutuamente, e essa rivalidade dilacerava-me o espírito. 

Agostinho morava com Alípio, seu amigo. Receberam, de passagem, um outro amigo, chamado Ponticiano, que contou-lhes a história de Santo Antão, um dos primeiros monges do deserto. Aquelas palavras simples e corriqueiras de Ponticiano foram como uma flecha no coração de Agostinho:

Foi isso que nos contou Ponticiano. E tu, Senhor, enquanto ele falava, me fazias refletir sobre mim mesmo, tirando-me da posição de costas, em que eu me havia colocado para não me enxergar a mim mesmo, e me colocava diante da minha própria face, para que eu visse quanto era indigno, disforme e sórdido, coberto de manchas e chagas. Se eu tentava desviar o olhar de mim mesmo, lá estava Ponticiano, continuando seu relato, e tu me colocavas diante de mim mesmo e me impelias, por assim dizer, diante dos meus próprios olhos, a fim de que eu descobrisse a minha iniquidade e a detestasse.

"Assim eu sofria e me atormentava, acusando-me muito mais severamente do que de costume. E, ao mesmo tempo, me debatia nas cadeias ainda não completamente rompidas que, embora apenas por um fio, ainda me prendiam. E tu, Senhor, não me davas trégua no íntimo do coração.

Quem de nós não sofre os desvios da carne e da indignidade? Quem de nós não tem, como diz a escritura, "diante de si toda a sua iniquidade"? (Salmo 50).

Ainda, como um testemunho pessoal, preciso dizer: quantas vezes não fiz à Deus a mesma acusação de Agostinho:

"E muitas coisas eu te disse, não exatamente nestes termos, mas com o seguinte sentido: "E tu, Senhor, até quando? Até quando continuarás irritado? Não te lembres das nossas culpas passadas!"
Sentia-me ainda preso ao passado, e por isso gritava desesperadamente: por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não por fim agora à minha indignidade?". Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração.

Não acredito que o Bom Deus, infinitamente bom e paciente, se ofenda com as birras de suas crianças amadas. Ainda que possamos dizer umas poucas e boas ao bom Deus, um grande pai e amigo me diz que o Senhor aguenta nosso mal humor, e não nos precisamos preocupar com qualquer impaciência da parte Dele.

Ele conhece nossa dificuldade de ver. Sabe, melhor do que nós, que estamos aprisionados pelas falsidades do mundo, do diabo e da carne, e que não vemos o mundo espiritual derramar sobre nós tantas graças.

Hoje, após uma confissão e boa conversa com um padre amigo, agradecia interiormente pelo dom dos bons sacerdotes. E pensei nas minhas birras com o Bom Deus; como sou capaz de dizer que Ele não tem me dado graças, ou que esteja demorando a dar-me o doce sabor da conversão?

Como posso dizer isto? Precisei de apenas alguns minutos no caminho de casa para cair em mim: dizer que o Bom Deus se afastou de nós, ou está demorando, é não só birra, mas loucura!

Deu-me a Igreja. Os santos! A sua mãe, a Virgem Maria. Estou rodeado de bons, virtuosos e santos sacerdotes. Temos acesso, como nunca antes, à sabedoria eterna dos santos! Deu-me bons, santos e virtuosos amigos!

Deu-me a oportunidade de acordar esta manhã. Com tanta paciência, permitiu-nos a graça de não morrer hoje para viver com Ele a doce vida na terra!

Outro dia, lia a meditação de Santo Afonso Maria de Ligório sobre a Assunção da Virgem Santíssima. Recomendo, viu?

O santo narra a chegada da Virgem Maria nos céus. O próprio Jesus a acompanhava, tendo descido à terra para buscá-la e escortá-la para dentro dos portões do paraíso. Imaginem a alegria dos céus! O Bom Jesus encontra a sua mãe, dando-lhe um abraço caloroso, declarando para ela seu amor! Os santos a recebem nos portões, todos ansiosos para vê-la e conhecê-la de pertinho. Louvando por sua misericórdia. O Apóstolo Tiago, que já estava no paraíso, veio receber a Mãe do seu Senhor e agradece-la! Imaginem a alegria do Bom Ladrão em encontrar Maria e abraçá-la!

Aquela narrativa belíssima me fez imaginar, sem medo de ser presunçoso, a minha entrada no paraíso (se tudo der certo, é claro, e tenho esperança que dará!). Imaginem ser recebido pelos teus santos de devoção às portas do céu, tão ansiosos em conhecê-lo e mostrar o tamanho do seu amor por ti. Imaginem chegar no céu e ser reconhecido pelo nome por Santa Teresinha do Menino Jesus, e ela declarar ansiosa a sua alegria por enfim vê-lo no céu! Imaginem ver com os próprios olhos (ainda que espirituais) que a multidão de Santos no céu não era indiferente à ti! Que te conheciam pelo nome! Conhecer os santos que partilhavam das suas misérias e também venceram! Conhecer aqueles santos anônimos que tomaram especial interesse pela tua santificação, e trabalharam silenciosamente no céu por ti! Conhecer as almas que as suas orações tiraram do purgatório, que fizeram de seu projeto no céu salvar a tua alma também!

Conhecer a Virgem Santíssima como jamais havia conhecido nesta vida, e contar à ela sua história enquanto ela calmamente sorri, pensando consigo, em silêncio, que sabia de tudo o que você contava!

Conhecer o Bom Deus e ver o brilho de sua luz, reconhecendo a alegria Dele em te ver lá!

Santo Agostinho viu, também. Como? Pela fé!

Se falo de ato de fé, falo de oração. Santo Agostinho teve a sua inteligência tocada pelo Bom Deus e sua vontade convidada. Isso é rezar! Veja:

"Eis que, de repente, ouço uma voz vindo da casa vizinha. Parecia de um menino ou uma menina cantando continuamente: "Toma e lê! Toma e lê!. Reprimi o pranto e levantei-me. A única interpretação possível, para mim, era a de uma ordem divina para abrir o livro e ler as primeiras palavras que encontrasse. Apressado, voltei ao lugar aonde Alípio ficara sentado, pois ali estava o livro do Apóstolo. Peguei-o, abri e li: "Não em orgias ou bebedeiras, nem na devassidão e libertinagem, nem nas rixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da carne.". 
"Nem quis ler mais, nem era necessário. Mal terminara a leitura dessa frase, dissiparam-se em mim todas as trevas da dúvida, como se penetrasse no meu coração uma luz de certeza."

E lembre-se: o Bom Deus salvou Agostinho da impureza de corpo e de coração. Porque não a ti e a mim?

Lembre-se: há esperança para nós!

Alegremos-nos sempre no Senhor.

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